quarta-feira, 24 de março de 2010

Por que arte na escola?


Nivaldete Ferreira*

Numa resposta bem simples, porque o ser humano não se esgota na racionalidade, no pensamento lógico. Já nos mais remotos tempos, ele produziu símbolos, imagens, criou rituais, danças, pinturas corporais, cestarias... Isto, por si só, evidencia algo que transcende a medida dos fazeres voltados para a mera sobrevivência física. Precisava-se de uma tigela. Fez-se a tigela, mas acrescentaram-se-lhe desenhos. Precisava-se de um cesto. Fez-se o cesto, mas acrescentaram-se-lhe cores e formas diferentes, que não bastava o cesto em si. Era pouco. E inventaram-se os cantares, que falar também não bastava. Assim o ser humano foi se cumprindo nessa outra dimensão: a da criatividade, da inserção, na vida, de algo que hoje chamamos de arte.


Compreendido esse alargamento do espírito, essa necessidade imposta pela nossa complexa máquina psíquica (se preferem uma linguagem mais 'científica'), é imperativo que a educação considere a arte como campo de conhecimento tão legítimo quanto matemática ou geografia, embora -sabemos todos - nem sempre tenha sido assim. E mesmo quando o ensino de arte se torna obrigatório, dificuldades ainda persistem. Muitos diretores e coordenadores de escolas (até pais) nem sempre compreendem o lugar da arte no ensino. Falta perceber que um ensino que desdenha a arte não está senão tentando produzir sujeitos domesticados, ignorados em sua individualidade, e essa individualidade exige,muitas vezes, o direito de criar, de se expressar, até para que exista equilíbrio psíquico, já que -como foi dito no início, o ser humano não acaba na definição que lhe foi imposta, aquela que o reduz a uma pura racionalidade que deve operar em função da produção de coisas e tarefas 'úteis'. Até me atrevo a pensar que muitos distúrbios psicológicos se derivam da falta de acesso ao imaginário artístico e sua vivência.


Não é à toa que Nietzsche, em Origem da Tragédia, defende a conciliação entre a sabedoria dionisíaca e o espírito apolíneo. Para ele, a cultura grega, que já dava sinais de decadência, entrou em acelerado desgaste justamente quando Sócrates apareceu e tratou de levar a juventude a apenas pensar, segundo um padrão dialético, em busca de uma 'verdade última'. Para ele, estabeleceu-se aí o exercício exclusivista da razão.


Tendo ou não razão no que se refere a Sócrates, importa que Nietzsche se fez um defensor ardoroso da arte, pois compreendeu a complexidade dos seres humanos, a sua necessidade irrevogável de criar, o que impediria que se convertessem em indivíduos tolhidos, mutilados espiritualmente, obedientes aos 'sistemas'. Ovelhados, enfim (lembro aqui o repúdio de Paulo Freire a toda educação que domestique os sujeitos. Será que ele não leu Nietzsche?).


Então arte na escola está mais do que justificada. E não se trata, aqui, de um discurso salvacionista. Pode-se mesmo dizer que a constituição fisiológica do indivíduo a reclama, embora em gradações diferentes. Como em tudo na vida.




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*Professora Doutora do Departamento de Artes-UFRN.

Obs. Os textos que postarei aqui serão, quase sempre, em tom de conversa. Conversando, espero que a gente se entenda.

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